Acho que dormir é um dos melhores momentos de se estar vivo. Depois, vem: rir, alongar o corpo, tomar banho de mar, beber água gelada. Nessa ordem. Ouvir música e receber um cafuné também estão na lista, mas quero falar aqui de sonhos repetidos.
Por anos sonhei com um casarão imundo repleto de baratas, mas quando escrevi Os tais caquinhos o sonho foi deletado do meu cérebro e nunca mais ressurgiu.
Depois, durante anos, sonhei quase que semanalmente que eu tinha que voltar ao colégio para terminar o Segundo Grau, que hoje chama Ensino Médio (mas no meu sonho a palavra Segundo Grau se repete de forma pavorosa), e eu visto o uniforme com a idade que eu tinha há época, 35, 36, 37 anos. Era humilhante e angustiante. Depois que minhas filhas nasceram o sonho PUF!, sumiu.
Agora o meu sonho repetido é que eu tenho um apartamento alugado no Rio de Janeiro com minhas coisas guardadas e eu fico passeando pela Barata Ribeiro, à procura de amigos que ajudem a carregar as coisas e a resolver as pendengas com a imobiliária. À vezes entro nesse apartamento e não me sinto mais pertencente a esses objetos, que estão empoeirados e gastos. O fogão oleoso, os livros molhados e caixas com pontas lascadas.
A agonia vem que, no íntimo, eu não sei para onde vou e para onde vão aquelas coisas que já não são minhas, mas continuam minhas. Acordo sempre no susto reconhecendo a luz escapando da cortina do meu quarto, a minha cama imensa, a textura dos lençóis. Estou em São Paulo, na casa em que moro há 11 anos, com meu marido, minhas duas filhas, dois periquitos soltos e uma gata filhote. Ufa.
Durante muito tempo fui uma andarilha na vida, já morei em muitas cidades e países, mas me fixei em São Paulo há quase 18 anos. A idade em que se conclui o Ensino Médio. Acho que existe uma relação de eu ser uma imigrante, de ter tido essa vida cigana e de quase nunca ter sentido uma sensação de aterramento em lugar nenhum. Nem onde nasci, Fortaleza.
Numa mesa recente, no teatro da UFC, em Fortaleza, falei como me sinto estrangeira em todos lugares e não pertencente a lugar nenhum. Mas ao longo dos anos vou acumulando objetos e esses objetos eu carrego em minhas costas, pouco alongadas, como uma formiga cansada. Acho que o fato de ser escritora contribui para esse sentimento de distanciamento e aproximação permanente que tenho em relação a pessoas, objetos e lugares.
Minha conclusão é nenhuma, parte talvez do medo que sempre tive de virar moradora de rua. De não ter fixado um lugar para mim. Mas até os moradores de rua fixam lugares que, observando de esguelha, às vezes parecem aconchegantes. Meu quarto é aconchegante, minha vida também. Por que continuo a sonhar flutuando sobre uma avenida barulhenta e apinhada de gente com uma mochila nas costas?
Arte: Mark Rothko | Number 1 (Royal Red and Blue)
acho muito curiosos esses sonhos recorrentes. quase nunca sei o que eles querem dizer e, assim como vêm do nada, do nada se vão.
Anos atrás (2018, acho) um colega professor me convidou para uma palestra na escola em que eu fiz o ensino médio (entre 93 e 95). Fui, foi bacana. Dias depois, sonhei que eu era convidado a lecionar lá. Mas, no dia em que chegava, a coordenadora do meu tempo de estudante aparecia e dizia que eu tinha que cumprir uma DP (!) de Inglês (!!) do 2º ano (!!!).
Depois disso, várias vezes sonhei que voltava lá para dar aula (mas a parte da DP foi só na primeira vez, tão marcante que nunca mais esqueci)