Susto. A foto de um rosto já conhecido flutua na timelime, emojis de corações cortados, declarações, despedidas. Você clica de novo e não acredita. Lê os comentários. Vai no perfil do amigo e lê comentários de desconhecidos lamentando a morte, como se eles, os mortos, ainda pudessem acessar suas contas.
Você conversa no privado com amigos, incrédula. Lágrimas começam a brotar e certa descrença boba, aquela que sempre acompanha a súbita notícia. Um gosto amargo te sobe na garganta porque você pressente, como as moléculas de um perfume muito doce borrifadas no ar, que a causa da morte foi suicídio.
Ele era escritor, dos bons, dos rápidos, dos sensíveis. Vivia fodido porque é muito caro sobreviver no Brasil. Ter um teto, luz, água encanada, a chama do fogão acesa para fritar as cebolas de um bife. Mestrado, doutorado, batatas das pernas delineadas como na estátua de um deus grego.
Ela era cineasta. Doce, sagaz, sorriso fácil. Rosto infantil, que se você mergulhasse uma pouco, descobria uma ranhura de tristeza. Mestrado, doutorado, deprimida, mas feliz com os amigos, viajada, gostava de se fantasiar no carnaval, purpurina, meia-arrastão, pochete. Tinha uma rede de amigos onde ela podia se jogar de costas e ser segurada como uma lagosta em uma tarrafa firme.
Os dois morenos, jovens, olhos castanhos e cabelos escuros e lisos. Estatura mediana. Meus amigos. Fazia muito tempo que não os via. Morávamos em cidades diferentes. Nossas últimas conversas foram sobre projetos que não vingaram, o que faz o gosto amargo que sinto me subir às narinas. Estou prestes a vomitar?
Sei que eram pessoas determinadas, bem-resolvidas, de olhar nos olhos numa mesa por onde, à noite, volteia uma brisa fresca. Determinados. Essa palavra me assusta. Entendo todos os suicidas, mas me mantenho viva, permanecerei viva em protesto, em vingança.
Ser artista no Brasil é mais inseguro do que limpar fossa. Eles não suportaram, e há de se ter um respeito solene diante disto. Uma tragédia. Outra tragédia. A filha grita que fez cocô. Interrompo minhas reflexões duras com os olhos moles de chorar, um naco pontudo de raiva do Brasil invade meu peito. A filha grita mais uma vez. A vida me chamando, a morte me chamando. Um cocô.
Meus amigos, que agora reinam em paz, sem boletos e angústias, podem ser essas nuvens no céu entremeadas pelo basculante do banheiro onde limpo minha filha. Não vomito. Minha filha está limpa. Já eu, não sei.
(Pintura de René Magritte)
Meus sentimentos pelas perdas. Adoro sua escrita.
quando a gente olha a superfície, não consegue ver a correnteza. só quem se arrisca no mar pode saber o que se passa por dentro. triste quando a desesperança atinge um ponto tão profundo…