Meu avô nasceu em Cajazeiras em 1929. Sua mãe, cujo nome desconheço, morreu no parto. Ele era o caçula de três irmãs. Seu pai, Vicente, rejeitou a criança e morreu tragicamente dois anos depois. Pobres, mas não tão pobres, foram crescendo sob o comando das irmãs mais velhas.
Os padres de Cajazeiras carregavam livros em carroças, meu avô, ainda criança, pedia alguns volumes emprestados — era uma coisa da natureza dele, gosto de adivinhar. Cresceu mergulhado em livros de toda sorte, enquanto suas irmãs cuidavam dele e da casa.
Aos 18, quando foi se alistar no exército, excluiu o sobrenome do pai. Depois, “deu carneiro”, foi de maleta e tudo para o Rio de Janeiro, capital do Brasil, no extinto Estado da Guanabara.
Trabalhou como ascensorista, sentadinho na banqueta, dava bom-dia, boa-tarde no elevador de porta pantográfica, enquanto lia seus livros, um hábito já solidificado, e estudava para fazer faculdade. Aos finais de semana ia estudar na Biblioteca Nacional, onde conheceu minha avó, Joana d’Arc, que era bibliotecária. O romance começou com bilhetinhos enfiados nos livros devolvidos e culminou em casamento.
José Paulo e Joana d’Arc no Estado da Guanabara, por volta dos anos 1950.
Meu avô conseguiu um emprego como repórter e entrou na faculdade de Direito. Tiveram sua primeira filha, minha mãe. Ele aprendeu sozinho três línguas e arriscava a pena em contos concisos, duros, gracialianescos. Seu autor preferido era o Máximo Gorki.
Nome que ganhou sua extensa biblioteca, já organizada pela minha avó em Brasília, quando resolveram migrar para a nova capital. Publicou um conto chamado “33”, numa edição da Câmara dos Deputados, com pinceladas autobiográficas e uma sintaxe limpa, rutilante. Publicou outros contos em edições esparsas, mas nunca se declarou como escritor— era mais uma coisa da natureza dele, também gosto de adivinhar. Definitivamente meu avô não era um nepobaby.
Mas eu sou. Filha de dois artistas relativamente reconhecidos, desde que nasci, fui inundada de referências importantes e iluminadas, estudei em escolas progressistas, tinha o livro, a peça, o filme, que quisesse à mão. Livros para mim eram como bananas. Foi até um caminho óbvio eu virar escritora. Ninguém nunca mandou eu fazer um concurso ou ameaçou o meu futuro dizendo que eu ia passar fome.
Eu, na barriga da minha mãe, Cristina Borracha, meu pai, Augusto Pontes, e Ednardo, durante a gravação do disco “Massafeira” do Pessoal do Ceará, em 1979.
Fico pensando no abismo enorme entre a trajetória do meu avô e a minha. Tenho amigos brilhantes cujos pais não são artistas e não tiveram a sorte de ter um começo de vida ilustrado como o meu. Sinto uma inferioridade em relação a eles, mas não posso chacoalhar o tempo e remontar o jogo. Foi assim.
Lembro de uma vez, e morro de vergonha, de soar arrogante ao desprezar as iconoclastias do Zé Celso no Teatro Oficina, enquanto uma amiga que vinha de uma família de não-artistas se encantava com o encantado. Eu bocejava e dizia, “ai, mas que saco, todo mundo tem que ficar nu. Fica um cheiro de cu no ar!”.
Hoje mudei, agradeço o berço em que nasci, mas não deixo de me encantar mais com pessoas, artistas, que nasceram num contexto desértico e viraram grandes criadores e pensadores. Enquanto isso, alguns nepobabys (eu) sempre carregarão o peso do sobrenome, um senso de inferioridade em relação aos pais e uma sorte um tanto injusta com os demais.
Nossa, pois eu sofro da inferioridade oposta: por vir de um contexto nada artístico e não ter tido nenhuma base na infância, sinto que tenho muito menos bagagem...
não havendo como mudar o passado, o jeito é honrá-lo da melhor maneira que a gente puder.