Essa é a única foto em que o Kurt Cobain se achava bonito. Como sei disso? Porque passei um ano passeando pela alma, corpo e história desse ser humano que tem um mapa astral raríssimo (todos os planetas em água, menos o ascendente em Virgem.)
Ele também era obsessivo. Li duas biografias dele, seus diários, vi todos os documentários e um milhão de vídeos no Youtube e no Instagram. Ele era obcecado por televisão aberta, Nesquick de morango e principalmente por detalhes sobre sua incipiente carreira musical, do tipo: “A cada 100 km verificar o óleo da van”. “Não permitir groupies e desconhecidos no camarim.” “Ensaiar cinco horas por dia é o mínimo aceitável.”
Ele desenhava coisas minuciosíssimas e específicas como um milho malvado no cocô. Ela colecionava fotos de vaginas com DST. Ele trabalhou como faxineiro de um resort e dormia no seu carro velho quando brigava com a primeira namorada, Tracy Marander, que foi sua única mecenas (tinha três empregos para sustentá-los) e inspirou a música agridoce “About a girl”. Hoje Tracy mora numa casa pobre, com as artes do seu ex-namorado colados na parede.
Eles habitavam um pardieiro que cheirava mal e tinha gatos, tartarugas e pássaros vivendo livremente pela minúscula casa. Kurt era obcecado por bonecas de plástico que ele deformava com fogo e tirava suas cabeças e reconfigurava os membros. Ele tinha uma tia que lhe apresentou Os Beatles: Aunt Mary. Ele gostava de Black Sabbath e Leadbelly, mas foi só no movimento Punk, depois de muito se perder, que Kurdt se encontrou. Começou a pichar “God is gay” nas ruas tristonhas de Aberdeen, sua cidade natal, e por isso foi preso.
Sua primeira tentativa de suicídio foi aos 13 anos, quando deitou nos trilhos de um trem e colocou três pedras grandes por cima de seu corpo mirrado para assegurar que não escaparia. (Esse detalhe das pedras me apavora até hoje.) Mas, misteriosamente, o trem pegou a outra rota da bifurcação. Isso tudo depois de ele ter uma primeira experiência sexual tenebrosa, com uma menina neuroatípica, que o deixou enojado com o cheiro do sexo.
Eu poderia listar um milhão de curiosidades como: sua família de raízes irlandesas já tinha três casos de suicídio por arma de fogo e que seu corpo foi encontrado ao lado do disco “Automatic for the People”, do R.E.M.— Michael Stype é padrinho de Frances Bean Cobain, sua única filha. Ou que seu tio-avô, Delbert, era tenor e apareceu no filme “King of Jazz”, em 1930.
Eu poderia passar o dia inteiro e a noite e a madrugada e o próximo dia emendando um detalhe no outro, como, por exemplo: ele lia e relia o romance “Perfume” de Patrick Süskind ou que na gravação de seu último clipe “Heart-Shaped Box”, Courtney Love criticou a roupa dele e ele, para se vingar, mergulhou o cigarro com a brasa acesa em sua própria testa no estúdio. Tiveram que fazer uma maquiagem para a gravação. Em sua passagem no Rio de Janeiro, reclamou do calor, mas comentou que “se tivesse nascido numa cidade assim seria feliz”.
Chega. O que me capturou no começo do ano passado foi um vídeo randômico dele, em uma premiação da MTV, quando percebi que ele era magro e pequeno demais. Media algo por volta de 1,75 ou menos e pesava só 56 quilos. Tinha escoliose. Sofria de dores alucinantes no estômago (provavelmente de fundo emocional) e, depois de várias consultas médicas e exames em vão, começou a se automedicar com heroína.
Até hoje não sei por que esse detalhe simplório do seu corpo raquítico me fisgou. Ele no palco era um gigante. E na minha cabeça também.
Não precisa nem dizer que só ouvia Nirvana e lia Nirvana enquanto sofria de um episódio de depressão severa, o que me acalentava e me afundava mais. Hoje, começo a me desinteressar aos poucos, apesar de continuar achando o Kurdt (como ele gostava de assinar no início da carreira) um ser de luz, atormentado, sensível, sublime e genial.
As imagens dele na banheira com sua filha e Courtney me emocionarão para sempre. Porque ali eu vejo que ele leve, sem dor de estômago, sem sua insuportável inflexibilidade, imensa e doída sensibilidade e contrariedade caraterísticas. Por pouco tempo Kurdt Cobain esteve realmente feliz.
E eu? Por que fiquei mergulhada no dono daqueles olhos azuis profundos e extraterrestres — que dedicou a sua carta de suicídio a Boddah, seu amigo imaginário de infância —, por que fiquei acorrentada por um ano àquele sorriso raro e solar, enquanto minhas filhas cresciam, aprendiam a ler e perdiam um dente atrás do outro?
Acho que a resposta vem do romance que estava escrevendo, ou por causa do fascínio que tenho por suicidas; por compreendê-los imensamente. Até inveja minha doença fez que eu sentisse deles. Não sinto mais inveja, mas cultivo e cultivarei uma reverência solene pela fulminante passagem de Kurt na Terra.
Existem muitas maneiras de viver. Ele escolheu uma muito rara, bonita, corajosa, intensa e arriscada. O mundo está errado, o mundo está sempre errado. Kurdt, não.
Ele foi basicamente um personagem de um grande romance.
de um obcecada por kurt para outro, que texto <3