Chovia forte. As telhas da nossa garagem são de placas de fibra de vidro. Apesar do plec plec ouvi um miado sutil, depois um mais forte, depois definitivamente um miado. Uma cabecinha preta apontava no vão do portão. Gritei: “Corre, pega uma tigela de leite!”.
Há tanto tempo queria um gato. E tinha que ser preto com os olhos verdes. Não sei por quê. Minha relação com gatos começou há quase vinte anos com o Wilson. Eu tinha pavor deles, mas mesmo assim os desejei. Vivemos treze anos juntos. Ele morreu no meu colo um ano depois que as minhas filhas nasceram.
Minhas filhas foram gatos por muito tempo. Molinhas, vulneráveis, incomunicáveis com palavras. Mas quando elas fizeram cinco ou seis anos percebi que não eram mais bebês. A vontade de ter um gato virou obsessão.
O gato fugiu com o barulho da louça da tigela no chão de pedra da garagem. Mesmo na chuva, procuramos pelo bicho com a lanterna do celular sem sucesso. Um, dois, três dias passaram. Desistimos. Não foi dessa vez, eu me conformava silenciosamente.
No quarto dia eu penteava os cabelos das minhas filhas, já de pijamas, antes de colocá-las para dormir. Miau. Miau. Miaaaaau. Eu respondi pela fresta da janela “miau” , o gato correspondeu desesperadamente, miau miau miau miau miaaaaaau. Ouvi até um provável som de erre no meio do apelo miado.
André foi procurar o gato na rua. Atravessou a rua. O gato entrou debaixo da calçada através de um meio-fio quebrado (gestão Nunes).
Depositamos uma lata de atum no asfalto, para ver se servia de isca. Nada. Ligamos para Zoonoses, nada. Polícia, nada. Os bombeiros pediram para eu gravar um vídeo (imagens fortes a seguir):
-Senhora, este animal está acuado, não podemos fazer nada.
Quinto dia, votei no Boulos e voltei a me comunicar com a calçada. Miau. Miau. Miau. Miau. E o gato respondia com o timbre cada vez mais desesperançado. Lembramos da nossa prima veterinária que mora no exterior. Ela mandou um áudio como se fosse um laudo médico depois de ver o vídeo. Encaminhei para o WhatsApp dos bombeiros.
Felizmente eles toparam fazer o resgate. Liguei muitas vezes, de pijama na rua, porque estava fora de mim, de órbita, como se eu estivesse presa no esgoto. E estava. O tal Cabo Mota nunca aparecia. Chegou o caminhão, imenso, intimidador, vermelho e brilhante como uma espaçonave.
Duvidaram. Depois de muita insistência e acordo com a síndica do prédio defronte a nossa casa, quebraram a calçada com uma britadeira. Demorou muito. Era uma ação arriscada porque podia matar o gato.
Felizmente, a bombeira, a única com boa vontade, viu um rastro de gato. André pegou uma toalha, a bombeira agilmente arrancou o gato da terra e me deu o bicho. Atravessei a rua agarrada a ele como se estivesse descendo a escadaria de Odessa.
Descobrimos que é Cícera e, não, Cícero. Está com a gente desde então. Para onde eu vou, ela vai atrás. Minha companheira preta e silenciosa. Os olhos que eram verdes estão amarelecendo.
Estou alegre porque agora tenho um bebê em minhas mãos. E terei por muito tempo. Um motivo para deixar qualquer pessoa alegre. Acho que Cícera, pelo jeito que cochila despreocupadamente ao lado dos meus pés, também está alegre.
Pintura de Aldemir Martins
Chorei nesse texto!
Incrível 💗