Acabei de receber um convite de um podcast presencial bem legal para falar sobre A Paixão segundo GH e meu romance Os tais caquinhos. Topei como se estivesse numa sala acolchoada, a baba escapando pelo canto da boca. Explico: Minha primeira paixão (e talvez única) literária foi (é) a Clarice Lispector. Explico mais.
Aos catorze anos, por exemplo, li Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres quatro vezes seguidas. A hora da estrela nem se fala. A descoberta do mundo era minha bíblia. Contos, crônicas, correspondências, entrevistas e livros infantis com o mesmo espanto e obsessão. Biografias. Clarice Lispector sempre foi minha maior rock star.
Mas aos 23, emburaquei nela tanto que comecei a dissociar. Parei de lê-la na metade de A paixão segundo G.H. Ali foi um momento difícil. Muito difícil. Eu atinei que ela estava lendo a minha cabeça, ou pior, que ela estava me transformando nela, me colocando naquela cúpula extraterreste de cristal dela onde sobrevoam em concomitância pavões alados (que não podem voar, eu sei) e morcegos tenebrosos, junto a todas as desgraças e maravilhas de se saber estar vivo. Não dava mais para mim.
Mudei de dança. Fui para outras praias. Estava chovendo e trovejando muito no Leme e os raios eram tão bem desenhados e fluorescentes e grossos e capilares que eu seria atingida pela sua lucidez fantasmagórica se não saísse correndo deixando minha sacola para trás. Eu queria também uma mate gelado num posto 9 solar, Clarice. Eu era muito jovem e medrosa. (Ainda sou meio medrosa, virei mãe.) Espero que você me perdoe por isso.
Agora, vinte e dois anos depois, vou te encarar, A paixão segundo GH (a mesma edição que abandonei). Vou recomeçar pelo começo. Porque, por puro pavor, bloqueei tudo.
O chamado vem sido escutado há anos. Ignoro. Um amigo implora para que eu releia o conto A legião estrangeira. Não esqueço do cego mascando chiclete, do nojo do vigor oleoso da natureza que você sentiu no Jardim Botânico, de outro conto que se não me engano, se chama Amor. Não esqueci nada. Esqueci tudo num quartinho bagunçado.
Li recentemente O mistério do coelhinho pensante, A mulher que matou os peixes e A vida íntima de Laura para minhas filhas. Elas ficaram em tamanho estado de suspensão que demoraram muito a dormir. Fico pensando se não foi um desculpa minha para recomeçar a te ler. Mas nem nos livros infantis você dá trela, Clarice. Seu respeito e espanto diante da vida são irrevogáveis.
Como termino este texto? Só ela sabia dar fins que eram começos e começos que eram fins. Termino e recomeço.
(Se você gosta do que escrevo considere contribuir com 5 reais mensais ou 80 reais anuais para o meu trabalho.)
Parece que, em algum momento de alguma leitura de um livro de Clarice, nos transformamos em personagem dela...Eu amo Perto do Coração Selvagem, primeiro livro da musa.
A Paixão segundo G.H. me conduziu do quarto da empregada à caverna de Platão...😳
ainda querendo ver o filme do luis fernando de carvalho a paixão segundo gh... não consegui ver quando estava em cartaz... na letras meu professor foi o miguel leocádio e o mestrado dele foi em clarice e seu gh... ele destrinchava nas aulas... náuseas...